domingo, 16 de maio de 2010

Clarice Lispector e a pintura - urtiga n° 12

Quais são os limites entre a pintura e a literatura? Em que momento as palavras deixam de ser palavras e passam a ser traços e cores? Como pintar um livro ou escrever um quadro? O pintor pinta o que não consegue descrever e o escritor escreve o que não consegue pintar. Medo, Explosão, Tentativa de Ser Alegre ou Caos da Metamorfose sem Sentido, Sobre Medo. Esses são os nomes de alguns dos quadros pintados por Clarice Lispector. Segundo Marcelo Bortoloti, os quadros de Clarice testemunham um período especialmente difícil para a autora: «Em 1975, ela fora demitida do Jornal do Brasil, no qual escrevia crônicas semanais, e estava preocupada com sua situação financeira. Embora ainda não soubesse do câncer que a mataria dois anos depois, sua saúde já estava debilitada. Aos 54 anos, escritora consagrada, ela se dizia cansada da literatura e declarava que pretendia parar de escrever, talvez para sempre. Ao longo desse ano, pintou freneticamente. São obras abstratas, algumas sombrias, outras muito coloridas, todas com nomes trágicos». Em dois de seus romances, Água Viva, de 1973, e o póstumo Um Sopro de Vida, as personagens centrais são artistas plásticas, e há títulos de quadros que foram usados pela autora nas obras que pintou depois.



Uma pincelada de cores e palavras - urtiga n° 12


Para fazer a leitura de Água, Viva, de Clarice Lispector, temos que estar preparados para mergulharmos em uma obra de arte, estando conscientes de que passaremos de leitores a pintores. Devemos estar com todo o material à mão para, juntos de Clarice, finalizarmos essa pintura/escritura.
Clarice, nessa obra, tenta escrever tudo o que não consegue pintar. É uma forma de se manter viva: «Eu acho que, quando não escrevo, estou morta». O nome Água Viva é um desejo de unir a arte à vida. E ela nos deixa inquietos, pois consegue entrar em nosso íntimo, deixando tortuosas dúvidas sobre o presente, o «instante-já». Logo no início do livro diz: «O presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já». Em alguns momentos do texto, a narradora tenta fazer pintura com as palavras, como se o ato de escrever exigisse um pincel e a mistura de cores. A palavra exata é uma cor apropriada para a tela: «Não pinto idéias, pinto o mais inatingível "para sempre". Ou "para nunca", é o mesmo. Antes de mais nada, pinto pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura».
Um dos quadros que Clarice pintou ganhou o nome de Gruta. Sobre ele, a narradora comenta: «As grutas são o meu inferno». Há uma angústia na pintura, uma vontade de dizer e não ter palavras, «seu doce horror». Ela sente medo de saber pintar o horror, mas é um horror doce,por isso pinta.
Água Viva nos permite ser ao nos fornecer as lacunas de uma narradora fragmentada. Assim, podemos usar o imaginário, conquistando uma autonomia que nos convida a finalizar a obra de arte: «O que te escrevo é um isto. Não vai parar: continua».
Clarice Lispector escrevia desde pequena e chegou a confessar: «Quando tinha nove anos, eu vi um espetáculo e, inspirada, em duas folhas de caderno, fiz uma peça em três atos, não sei como. Escondi atrás da estante porque tinha vergonha de escrever».
Ela tinha um método de escrita, anotava todas as idéias a qualquer hora, em qualquer pedaço de papel, afinal, as idéias fogem, não é? Sempre com seu estilo intimista buscando entender o que significa «estar no mundo».
Numa crônica publicada em 1968 no Jornal do Brasil, ela comenta: «(...) fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdôo». Neste fragmento do livro de crônicas A Descoberta do Mundo, Clarice Lispector nos mostra todo o seu drama particular. Ela veio de uma família judaica, recebendo o nome de Haia, que significa Vida. Terceira filha de Pinkouss e Manica Lispector, natural da Ucrânia, Clarice veio para o Brasil ainda recém-nascida e tornou-se uma das escritoras mais importantes da literatura modernista, junto com Guimarães Rosa, nos anos 60. Seu primeiro romance foi Perto do Coração Selvagem, com o qual ganhou o Prêmio Graça Aranha, no ano de 1944. Clarice Lispector morre no Rio de Janeiro em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos. Carlos Drummond de Andrade, seu amigo, escreveu: «Clarice veio de um mistério, partiu para outro. Ficamos sem saber a essência do mistério ou o mistério não era essencial, era Clarice viajando nele».

Jucimara Garbos, graduada em Letras pela FAFIUV; cursando especialização em Língua Portuguesa e Literaturas (FAFIUV)

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